Tuesday, February 21, 2006

estrada da Beira

Quando eu era miúdo fazíamo-nos à estrada, no pino do Verão e por ocasião do Natal, num portentoso Fiat 128 de estofos de plástico. Eu equipava o banco de trás com uma dúzia de cassetes e um rádio-gravador, cheio de botões e frequências escritas em alemão, e partíamos para os fastidiosos 480 quilómetros rumo a Trás-os-Montes. A auto-estrada acabava em Aveiras e vinha a Nacional 1, pejada de camiões que faziam a minha delícia. Parávamos sempre na Batalha, onde eu bebia - sempre - uma coca-cola e fitava a estátua do Dom Nuno Álvares Pereira em frente ao mosteiro, e onde se compravam pastéis de Tentúgal – de que nunca gostei. Mais uns quilómetros e nova paragem para comprar as queijadas únicas dum restaurante à beira-estrada “São Sebastião”. Por alturas de Coimbra acompanhava-se por momentos o Mondego, em contra-corrente, antes de se apanhar a estrada da Beira, descampada de um lado e outro, quilómetros a fio de paisagem inóspita, calcorreada aqui e ali por imponentes pedras de granito entre a erva amarelecida do Verão ou o orvalho de final de tarde no Inverno. Paragem também obrigatória na Pousada de Santa Bárbara, para um carioca de limão sentado em poltronas art-deco do Portugal pós-moderno, vista para a Serra e o cheirinho do pinhal. Em Celorico da Beira era a hora da bela da sandes de salpicão antes de se enfrentarem as curvas cortadas em contra-mão desde Foz Côa – ainda sem a atracção das gravuras – até ao Pocinho e as suas fascinantes locomotivas a vapor a ganharem ferrugem.


Hoje atravessei meio Portugal desde Lisboa à Cidade Berço, ida e volta a 160 km/hora por auto-estradas moídas, na companhia dos sons dos “Boards of Canada” a 90 dB, a comiscar umas míseras bolachas de muesli, compradas numa qualquer estação-de-serviço, e com uma garrafa de coca-cola formato plástico no suporte que os brilhantes designers da Volkswagen colocaram mesmo em frente da saída dos CDs.

Monday, February 20, 2006

Ocre

Hoje apetecia-me pegar no portátil, apanhar um avião, alugar uma água-furtada em Siena e dedicar um ano de vida a escrever um romance.

Friday, February 17, 2006

excertos #2

3
Qui si lavora, non si parla di politica
- barbieri italiano




Conheço o Tomás desde os nossos 5 anos. Nunca conheceu o pai que foi uma das poucas vítimas da guerra colonial em Moçambique e ficou órfão de mãe na altura em que se mudou para o bairro, para casa do tio Simão, na altura um proeminente advogado em Lisboa. Tornámo-nos compinchas durante a primeira semana de aulas da 2ª classe. A mãe do Tomás estava nessa altura internada no hospital e ele decidiu rogar uma praga à imagem de Nossa Senhora existente na igreja de São Sebastião, ameaçando destruí-la se a mãe não ficasse boa. Durante dois meses, a coisa arrastou-se: brincadeiras na rua de trás ao final da tarde, visitas à mãe nos sábados à tarde com o tio Simão e a esposa – um péssimo modelo de mãe, casada em segundas núpcias com o tio Simão e com assinatura na ópera do São Carlos. Até que numa quarta-feira, o Tomás não apareceu na escola e no dia seguinte os meus pais foram ao funeral da mãe dele. Nessa tarde, não tive que ir à escola e fiquei a fazer companhia ao Tomás que me obrigou a acompanhá-lo até à igreja de São Sebastião onde derrubou a imagem de Nossa Senhora.
Hoje o Tomás trabalha como assistente na pujante indústria cinematográfica, nacional encharcada de dinheiro à custa dos subsídios estatais e da necessidade absoluta de entreter as gentes. O Tomás é um verdadeiro especialista em cinema, que deve ter passado mais tempo em frente ao ecrã do que qualquer outra pessoa que eu conheça. É também uma verdadeira enciclopédia ambulante, capaz de identificar os actores, citar as expressões e descrever as cenas de todos os tipos de filmes, desde os premiados até às produções alternativas. Vive desafogadamente, em função da herança que o tio lhe deixou e desde que apareceram os DVD já deve ter mandado fazer umas dez estantes em mogno que ocupam todas as paredes, de alto a baixo, da divisão que antigamente servia de escritório ao tio Simão, substituindo os antigos livros de direito. Para além disso é um tipo peculiar, que apesar de poder comprar um Ferrari, se assim o desejasse, jamais pôs as mãos num volante, deslocando-se sempre de táxi enquanto está em Lisboa e de comboio para se deslocar a Paris. Nunca leu um livro, defendendo que todos os romances que valha a pena ler acabarão por passar ao cinema e no entanto é o leitor mais compulsivo de revistas e jornais que conheço, coleccionando de forma interminável os artigos de opinião que vai lendo, e desde que descobriu a Internet, montou uma base de dados destes, acessível a qualquer um e que por isso gasta uma fortuna na subscrição das versões electrónicas das mais variadas publicações: The Economist, The Spectator, The New Yorker, O Expresso, Le Nouvelle Observateur, Der Spiegel, etc.
O Tomás é também o maior aficionado de futebol que conheço. Aliás, não de futebol mas sim do Benfica. Não me recordo de alguma vez o ter visto a seguir um jogo que não envolvesse o Benfica, nem sequer os da selecção nacional. Em 1982, foi, juntamente com mais meia dúzia de meninos ricos, o grande dinamizador do “Exército Rubro”, uma claque que não durou mais de duas épocas porque não possuía qualquer tipo de ideologia, subsistindo à custa do fornecimento de entrada à borla aos membros da claque, mas que ainda assim ficou célebre pelos problemas causados durante uma tentativa de espera ao árbitro quando o Benfica defrontou o Anderlecht na final da Taça UEFA de 1982/1983.


Nota do autor:
Este era o capítulo 3 e como é fácil de entender o melodrama tinha pinta de best-seller. Estava sobretudo a precisar de uma bela revisão mas "em bruto" também vale a pena.

excertos

1
Até aos 20 anos eu não tinha preocupações, levava uma vida boémia, depois eu casei e tive que começar a trabalhar, e aí eu escolhi a arquitectura.
- Óscar Niemeyer




Sete décimos da vida...

- Um Martini Rosso, por favor! E tu Magda o que queres?
- Pode ser um capuccino, se faz favor.
- Cappucino não temos. Café com natas?
- Sim, pode ser. Numa chávena grande, se possível!?
- Concerteza!
Pois, aqui estou eu no Rabat – o café frequentado pelos actuais teenagers de Lisboa, os sucedâneos da geração rasca – a tentar a minha sorte com a enfermeirinha de serviço.
- Bom, onde é que eu ia? Ah, já sei. Eu andava mesmo cansada, trabalhar na urgência era um stress. Principalmente, quando entravam acidentados acompanhados de familiares aos gritos e o serviço já estava cheio de criancinhas e mães histéricas. Para cúmulo, ao fim de semana ainda fazia uma perninha numa casa de saúde para doentes mentais, mulheres deprimidas e ex-drogados em fase de readaptação. Mas fazia bom dinheiro, compensava o sacrifício.
- Agora que falas nisso, estava no outro dia a ver uma reportagem num qualquer telejornal em que diziam que o rácio de depressões em Portugal é muito superior à média europeia.
Esta estúpida mania de comparar tudo o que se passa no nosso país com os indicadores estatísticos da União Europeia, ainda há de nos fazer afundar no Atlântico! Acho que seria bem capaz de patrocinar um qualquer grupo terrorista, desde que prometessem acabar com o Eurostat.
- Pois é. Há mesmo muitos portugueses à beira do precipício.
- Eu não entendo é porquê!? Até parece que somos todos uns fracos. À primeira dificuldade, entramos logo em parafuso.
- Pois é, pois é!
- No fundo, acho que a causa tem bastante que ver com a desorganização das nossas vidas. Se as pessoas parassem para pensar um bocadinho, chegavam rapidamente à conclusão que existem coisas que podem ser mudadas e que provocariam uma volta de cento e oitenta graus nas suas vidas. O exemplo típico, tem a ver com o facto de a grande maioria das pessoas trabalharem em Lisboa e viverem nos seus arredores. Tudo bem, não há dinheiro e as casas são muito mais baratas em Sintra ou Alverca mas na verdade também não são capazes de fazer um par de continhas para chegarem à conclusão de que o que não pagam com o empréstimo ao banco, acabam por gastar em gasolina, portagens ou carro. E depois não há... prii, prii – tocou o telemóvel da Magda.
Ela atendeu, e eu fiquei para ali a pensar, que raio de conversa estava a ter. Tudo bem que dar uma de intelectual moderno torna qualquer homem atraente, mas gastar o meu latim com teorias acerca da vida quando uma fútil conversa de engate bastaria, é pura perda de tempo, para resultados equivalentes.
A conversa telefónica dela demorou – era com o irmão, um tipo sensaborão conhecera à umas semanas atrás, numa almoçarada de ensopado de borrego ao pé de Sines, e que vivia em Serpa, depois de ter decidido que a grande cidade não era para ele. Casado e pai de três filhos, de certa forma encantadores mais não fosse pela ruralidade evidente sob a forma de faces rosadas e aparentemente, pelo teor da conversa, em vias de atingir os índices de fertilidade comuns na África subsahariana. Pena é que não abunde em Portugal esta necessidade de alcançar os índices terceiro mundistas realmente importantes – pensei eu para os meus botões.
Quando ela finalmente desligou, decidiu pôr-me a par das novidades, resultantes da mais recente ecografia:
- Desta vez é uma menina e vai-se chamar Carla! – Carla, no meu estereotipado mundo dos rótulos, significa frasco sem conteúdo digno de referência mas possibilidade de vidro de qualidade e certeza absoluta de faces rosadas, i.e., encaixe perfeito entre a prole já existente.
- Que bom. Depois de três rapazes devia ser mesmo isso que desejavam.
- Sim, já basta de homens a atazanarem a minha cunhada.
- Pois! – respondi eu, em tom melancólico, para ver se não íamos desfazer o novelo deste assunto por muito mais tempo.
- Sabes que essa questão de ser menino ou menina tem muito a ver com as fases da lua. Parece que as probabilidades de sair rapaz são muito grandes em quarto crescente e menores em quarto minguante.
- Sim!?
- Foi o que li numa revista de medicina, lá no hospital.
Era a minha quarta ou quinta saída com a Magda e pela quarta ou quinta vez, dei comigo a pensar: o que é que eu estou aqui a fazer. Ela tinha um corpinho jeitoso e o culto do bronzeado. Conhecera-a uns dois meses antes no casamento de uma antiga namorada de liceu, que, preocupada com os meus devaneios, me tinha promovido junto de seis ou sete colegas, recém chegadas ao hospital e com tendência para procurarem o homem ideal entre a classe dos trintões. A Magda destacara-se da concorrência, em primeiro lugar, pela voluptuosidade do seu peito e também por ser capaz de dançar sem a necessidade de pôr os seus pés por debaixo dos meus. Também fora capaz de aceitar facilmente o meu estado de embriaguez sem ter a necessidade de afirmar em demasia a disponibilidade para tomar conta de mim – o que não acontecera com as demais, cujos conselhos derivavam desde a rodela de ananás até ao “vamos caminhar pelo jardim”. Como dizia alguém, num filme qualquer, os casamentos são o sítio perfeito para se encontrar parceira mas esta nunca poderá ser perfeita nem que seja pelo simples facto de se tratar da situação mais propícia ao encontro motivado pelo desespero.
Encurtei a conversa, bebendo o que restava do meu Martini, suficientemente depressa para não chegar à fase da cara de enjoada e não tão depressa que ela pudesse ficar a pensar que a estava a despachar.
Saímos do Rabat e acompanhei-a ao carro que estava estacionado num praceta próxima. Na despedida, ela demorou o tempo quanto baste para ver se daquela vez saia beijo e eu encurtei a situação com a desculpa de que já era tarde e de que tinha trabalho no dia seguinte. Enquanto conduzia para casa, recebi uma mensagem dela, no telemóvel, em que dizia estar arrependida de não me ter roubado um beijo. Não respondi e quando cheguei a casa ainda tive que dedicar uma boa meia hora à leitura do jornal do fim de semana passado, tendo reafirmado para mim próprio que não voltaria a combinar nada com a Magda, antes de apagar a luz.

No dia seguinte, logo pela manhãzinha passei pelo Timbuctu, o café mais castiço do bairro – e também o único café do bairro – na esperança de encontrar o Tomás, para lhe relatar mais uma magnífica noite de proezas sexuais e o obrigar a prometer que me humilharia publicamente se eu voltasse a sair com a Magda. Mas não o encontrei e apenas o Sr. Margarido (o dono do Timbuctu) me fez uma grande festa por ser a segunda vez naquela semana que por lá aparecia para tomar o pequeno-almoço.


Nota do autor:
À falta de inspiração, estava para aqui a vadiar entre a centena de ficheiros “New Book” que me entopem o PC e encontrei esta tentativa frustrada de plágio à Margarida Rebelo Pinto, datada dos idos de 2003, quando achava – ou pretendia provar a mim próprio – que seria capaz de fazer fortuna a escrever ficção de qualidade duvidosa. Evidentemente, desatei-me a rir (em particular, com o ridículo dos nomes dos personagens) e concluí que é bem mais divertido divagar de vez em quando no ripples.

Tuesday, February 14, 2006

fy

In Liverpool
On Sunday
No traffic
On the avenue
The light is pale and thin
Like you
No sound, down
In this part of town
Except for the boy in the belfry
He's crazy, he's throwing himself
Down from the top of the tower
Like a hunchback in heaven
He's ringing the bells in the church
For the last half an hour
He sounds like he's missing something
Or someone that he knows he can't
Have now and if he isn't
I certainly am

Homesick for a clock
That told the same time
sometimes you made no sense to me
if you lie on the ground
in somebody's arms
you'll probably swallow some of their history

And the boy in the belfry
He's crazy, he's throwing himself
Down from the top of the tower
Like a hunchback in heaven
He's ringing the bells in the church
For the last half an hour
He sounds like he's missing something
Or someone that he knows he can't
Have now and if he isn't
I certainly am

Monday, February 6, 2006

...estamos contigo Miguel

O cerco

Já faltou mais para que um dia destes tenha de passar a clandestinidade ou, no mínimo, tenha de me enfiar em casa a viver os meus vícios secretos. Tenho um catalogo deles e todos me parecem ameaçados: sou heterossexual «full time»; fumo, incluindo charutos; bebo; como coisas como pézinhos de coentrada, joaquinzinhos fritos e tordos em vinha d'alhos; vibro com o futebol; jogo cartas, quando arranjo três parceiros para o «bridge» ou quando, de dois em dois anos, passo à porta de um casino e me apetece jogar «black-jack»; não troco por quase nada uma caçada às perdizes entre amigos; acho a tourada um espectáculo deslumbrante, embora não perceba nada do assunto; gosto de ir a pesca «ao corrido» e daquela luta de morte com o peixe, em que ele não quer vir para bordo e eu não quero que ele se solte do anzol; acredito que as pessoas valem pelo seu mérito próprio e que quem tem valor acaba fatalmente por se impor, e por isso sou contra as quotas; deixei de acreditar que o Estado deva gastar os recursos dos contribuintes a tentar reintegrar as «minorias» instaladas na assistência publica, como os ciganos, os drogados, os artistas de varias especialidades ou os desempregados profissionais; sou agnóstico (ou ateu, conforme preferirem) e cada vez mais militantemente, na medida que vou constatando a actualidade crescente da velha sentença de Marx de que "a religião é o ópio dos povos»; formado em direito, tornei-me descrente da lei e da justiça, das suas minudencias e espertezas e da sua falta de objectividade social, e hoje acredito apenas em três fontes legítimas de lei: a natureza, a liberdade e o bom senso.
Trogloditas como eu vivem cada vez mais a coberto da sua trincheira, numa batalha de retaguarda contra um exercito heterogéneo de moralistas diversos: os profetas do politicamente correcto, os fanáticos religiosos de todos os credos e confissões, os fascistas da saúde, os vigilantes dos bons costumes ou os arautos das ditaduras «alternativas» ou «fracturantes». Se eu digo que nada tenho contra os casamentos homossexuais, mas que, quanto à adopção, sou contra porque ninguém tem o direito de presumir a vontade «alternativa» de uma criança, chamam-me homofónico (e o Parlamento Europeu acaba de votar uma resolução contra esse flagelo, que, como está à vista, varre a Europa inteira); se a uma senhora que anteontem se indignava no «Público" porque detectou um sorriso condescendente do dr. Souto Moura perante a intervenção de uma deputada, na inquirirão sobre escutas na Assembleia da Republica, eu disser que também escutei a intervenção da deputada com um sorriso condescendente, não por ela ser mulher mas por ser notoriamente incompetente para a função, ela responder-me-ia de certeza que eu sou "machista» e jamais aceitaria que lhe invertesse a tese: que o problema não é aquela deputada ser mulher, o problema é aquela mulher ser deputada; se eu tentar explicar por que razão a caça civilizada é um acto natural, chamam-me assassino dos pobres animaizinhos, sem sequer quererem perceber que os animaizinhos só existem porque há quem os crie, quem os cace e quem os coma; se eu chego a Lisboa, co­mo me aconteceu há dias, e, a vinte quilómetros de distancia num céu límpido, vejo uma impressionante nuvem de poluição so­bre a cidade, vão-me dizer que o que incomoda verdadeiramente é o fumo do meu cigarro, e ate já em Espanha e Itália, os meus países mais queridos, tenho de fumar envergonhadameme à porta dos bares e restaurantes, como um cão tinhoso; enfim, se eu escrever velho em vez de «idoso», drogado em vez de «toxicodependente», cego em vez de «invisual», preso em vez de «recluso» ou impotente em vez de «portador de disfunção eréctil", vou ser adoptado nas escolas do país como exemplo do vocabulário que não se deve usar. Vou confessar tudo, vou abrir o peito as balas: estou a ficar farto desta gente, deste cerco de vigilantes da opinião e da moral, deste exército de eunucos intelectuais.
Agora vêm-nos com esta historia dos "cartoons» sobre Maomé saídos num jornal dinamarquês. Ao princípio a coisa não teve qualquer importância: um «fait-divers» na vida da liberdade de imprensa num pais democrático. Mas assim que o incidente foi crescendo e que os grandes exportadores de petróleo, com a Arabia Saudita à cabeça, começaram a exigir desculpas de Estado e a ameaçar com represálias ao comercio e às relações económicas e diplomáticas, as opiniões publicas assustaram-se, os governantes europeus meteram a viola da liberdade de imprensa ao saco e a sr.ª comissária europeia para os Direitos Humanos (!) anunciou um inquérito para apurar eventuais sintomas de «racismo» ou de «intolerância religiosa» nos cartoons profanos. Eis aonde se chega na estrada do politicamente correcto: a intolerância religiosa não é de quem quer proibir os «cartoons», mas de quem os publica!
A Dinamarca não tem petróleo, mas é um dos países mais civilizados do mundo: tem um verdadeiro Estado Social, uma sociedade aberta que pratica a igualdade de direitos a todos os níveis, respeita todas as crenças, protege todas as minorias, defende o cidadão contra os abusos do Estado e a liberdade contra os poderosos, socorre os doentes e os velhos, ajuda os desfavorecidos, acolhe os exilados, repudia as mordomias do poder, cobra impostos a todos os ricos, sem excepção, e distribui pelos pobres. A Arábia Saudita tem petróleo e pouco mais: é um país onde as mulheres estão excluídas dos direitos, onde a lei e o Estado se confundem com a religião, onde uma oligarquia corrupta e ostentatória divide entre si o grosso das receitas do petróleo, on­de uma policia de costumes varre as ruas em busca de sinais de "imoralidade privada», onde os condenados são enforcados em praça pública, os ladrões decepados e as «adulteras» apedrejadas em nome de um código moral escrito há quase seiscentos anos. E a Dinamarca tem de pedir desculpas à Arábia Saudita por ser como é e por acreditar nos valores em que acredita?
Eu não teria escrito nem publicado «cartoons» a troçar com Maomé ou com a Nossa Senhora de Fátima. Porque respeito as crenças e a sensibilidade religiosa dos outros, por mais absurdas que elas me possam parecer. Mas no meu código de valores — que é o da liberdade — não proíbo que outros o façam, porque a falta de gosto ou de sensibilidade também tem a liberdade de existir. E depois as pessoas escolhem o que adoptar. É essa a grande diferença: seguramente que vai haver quem pegue neste meu texto e o deite ao lixo, indignado. É o seu direito. Mas censurá-lo previamente, como alguns seguramente gostariam, isso não.É por isso que eu, que todavia sou um apaixonado pelo mundo árabe e islâmico, quanto toca ao essencial, sou europeu — graças a Deus. Pelo menos, enquanto nos deixarem ser e tivermos orgulho e vontade em continuar a ser a sociedade da liberdade e da tolerância.
© Miguel Sousa Tavares - Jornal "Expresso" - 04.02.2006