Friday, March 30, 2012

“Tu e eu”

Foi depois de ter tentado arrumar tudo, inclusive o que não queria, que me encostei no sofá e me senti desconfortável. Cheguei-me atrás, sem melhorar o resultado, e classifiquei-me de grande preguiçoso, constatando que não fiz o suficiente para merecer cores bonitas na minha vida. Foi neste exercício de auto-flagelação, acompanhado pelo som maquinal da roupa a enxaguar na divisão ao lado, que me senti subitamente vazio. A premeditar um momento vegetal, decidi embriagar-me com o restinho de coca-cola que descobri no frigorífico. Estado de loucura precoce para quem há poucas horas experimentou um café puro-árabe. O excesso de cafeína fez-me sentir enjoado. Estendi a roupa que me pareceu tão manchada quanto antes da entrada na máquina da treta e puxei o portátil lá para fora, para a posição dos pés-ao-ar. Fiquei muito tempo com os olhos muito abertos a fixar as teclas que nos compõem as palavras “Tu e eu”.

Saturday, March 24, 2012

Take me to Israel… (*)

Take me to Israel he asked. I’m in need of a place of faith where we can forfeit the past and give way to our future. I’m in need of your smart-talk and companionship. I’m in need of touching your skin and watching you sleep.
So many needs... But the past is inside the present, don’t you see?
I know it all. And yet I admit no good or God in the current state of affairs. Maybe it’s time to fast-forward it and let the movie flow from the challenging scene where my conviction surpasses your stubbornness, the scene when you restart dreaming.
Maybe... Or maybe it’s time you try harder to win me over. Maybe then I’ll take you to Israel or we’ll go together to the sacred mountains of Peru, Japan and Australia.
Machu Picchu, Fuji and Uluru... Ok, I’ll have my olives on the plane across the Pacific.

(*) diálogo non-sense imaginado sob o efeito da baixa-tensão na sauna – adaptável para uma peça de teatro modernaça.

iPá - think outside the box

Tem a mesma idade que eu. Tem o mesmo nome que eu. Andámos juntos no colégio, aliás nos colégios. Nos franciscanos eu era da turma A ele da B. Nos jesuítas ele era da turma D e eu continuava na A. Em pequeno ele tinha um ar enfezado mas já ensaiava ser engraçado. Reencontro-o nesta cidade onde veio dar uns espectáculos. Em terra de português diferente, recorre à tecnologia ubíqua para fazer rir o público perdido. Cumprimentamo-nos no final e relembramos a Maria Armanda. Surreal!

Friday, March 23, 2012

O pdi

Em termos práticos e seguindo o curso natural das coisas, eu podia ter nascido alguns anos antes. Sendo razoável, podia ter mais 5 anos do que tenho, sem problema nenhum. Acontece que os progenitores decidiram gozar a vida boa, a dois, alguns anos mais, antes das preocupações que um filho traz. Fui, de certa forma, adiado. E sem saberem, pode ser que me tenham adiado a vida feliz. Porque isto do problema da idade (o pdi) acarreta (gosto desta palavra) consequências e diferenças difíceis de superar. Talvez então (gosto desta expressão), a tivesse encontrado (da primeira vez) num semáforo, de DT e capacete na mão (rebelde aos dezassete) com o cabelo curto e o olhar rotundo para me apaixonar logo ali, enquanto o semáforo passava a verde e eu perdia a mudança com o pé de apoio a fraquejar, preocupado em seguir aquela miúda singular e acelerada pela Estrada de Benfica para perceber o destino. Num outro cenário, talvez ela tivesse reparado em mim numa festa do Seagull ao som (foleiro) do Phil Collins, e naquele preciso momento tivéssemos descoberto uma vida diferente, sem o fuso horário que hoje nos separa. Então, o “para sempre” seguro, inequívoco e pleno de felicidade, atravessava-nos a vida sem o cupido postergar o que somos hoje.


Monday, March 19, 2012

As pesquisas estranhas no Google

À procura da receita, introduzi “how to melt an iceberg” (sem as aspas) no motor que manda no mundo. A pensar nisto, inspirei-me instantaneamente um thriller que sairia demasiado JRdS e por isso um “traila” foleiro (“prontos”, admito que ando com a mania que sou crítico literário, sem causa justa quando os meus escritos não passam do folhetim).
Nas primeiras páginas saíram-me resultados “de facto” interessantes, entre os 2,6 milhões de sugestões que não me senti capaz de explorar:
- Pintá-los de negro para aumentar exponencialmente o efeito da radiação… equivale a oferecer-lhe um LBD (acrónimo memorável) ainda mais giro e “fit” do que todos os que já tem…
- Com um sorriso, parece que os icebergues derretem melhor com o sorriso perfeito… vou começar a ensaiar diante do espelho.
- Nas correntes de água quente, principalmente a do Golfo… o que implica convidá-la (e ela aceitar) para uns dias nas ilhas das Caraíbas a desfrutar do mergulho nos recifes…
- Com a água doce da chuva… que é o que tenho tentado fazer à base de palavras demasiado escritas.
A maior parte dos resultados falam dos efeitos do aquecimento global. Acontece que esperar pelo devir deste demora mais tempo do que eu tenho, mesmo se a minha confiança e persistência chegavam para o infinito quando eu descobrir a fonte da juventude eterna.

Monday, March 12, 2012

O meu “último” avô

O meu “último” avô morreu há mais ou menos 4 anos. Por causa de uma viagem, não o fui ver nos últimos dias de uma vida que espero tenha sido completa, mas imagino-o, muitas vezes, quieto e parado, deitado, de olhos pequeninos e deambulantes a perscrutar o tecto. Era o avô que gostava de me contar os sonhos e que dava importância à descendência masculina, e eu era o seu único neto homem. Falava francês mas nada de inglês e lia comigo as histórias das guerras napoleónicas quando eu entrei para o ciclo e comecei a decifrar o seu idioma estrangeiro. Gostava das viagens ao sul de Espanha e também visitou os países do norte da África, numa espécie de peregrinação como quem pretende encontrar as raízes ancestrais. Na realidade tinha nariz de judeu, que eu via especialmente saliente quando ele pretendia tocar o violino que estimava mas só arranhava. Gostava de música clássica que eu ouvia tocar no armário gira-discos onde eu, miúdo, me poderia esconder se me deixassem quando visitava a casa onde viveu quase todos os seus anos. Quando se fez a “limpeza” da outra casa onde viveu até quando pôde, ali para a Linha, com uma vista interessante para o mar, com o Bugio à vista, descobriram um envelope, não muito grande, com algumas moedas, que imagino muito antigas – ainda não tive vontade de o abrir – com o meu nome “Ricardo” inscrito pela sua caligrafia, que reconheço. E cada vez que olho para o legado envolto em papel branco que me decidiu deixar, recordo-lhe o rosto simpático, marcado pelo tal nariz judeu, os sonhos dele e o temor que sentia pela morte.

Sunday, March 11, 2012

O gato do bucatini

Ele era um gato vadio que morava lá pelo bairro. Listrado a laranja sobre o pelo claro era um gato engraçado que não se deixava apanhar. Sabia o truque de miar nos jardins das casas do bairro até alguém o vir alimentar. Nessas alturas deixava que lhe fizessem festinhas antes da fuga. Não repetia muito as casas para não ser um gato chato e evitava assim afeições. Durante aquela primavera visitou por três vezes o jardim das buganvílias da casa onde morava a miúda de cabelos loiros e compridos. Da primeira vez ela ofereceu-lhe um pires a transbordar de leite e ele ficou insatisfeito, escapando-se de repente enquanto ela lhe festejava as orelhas. Da segunda vez ela trouxe-lhe um pratinho de arroz com atum e ele deixou-a percorrer-lhe o corpo com as duas mãos. À terceira visita ela compôs-lhe uma tigela de bucatini com salmão, ornamentada com um raminho de coentro, e ele deixou-a pegar-lhe e levá-lo para casa. Ela decidiu chamar-lhe Bucatini e passou a acordar com ele, mansinho, em cada manhã.