Wednesday, August 18, 2010

das leituras de verão (as dos outros e a minha)

O que os bimbos lêem nas férias (títulos percebidos num final de tarde na piscina de um aparthotel-kitsch-na-moda):
Vários do Nicholas Sparks – nunca li, dizem que é mais ou menos o Paulo Coelho dos anglo-saxónicos… tudo dito!
“Um amor em tempos de guerra”, Júlio Magalhães – isto dos pivots acharem que são escritores, ainda acaba mal… recomendo antes o plagiado “Amor em tempos de cólera” do GGM, esse sim é um escritor a sério!
“[título não percebido]”, Francisco Moita Flores – quem?
“[um título qualquer]”, Nick Hornby – uma bimba com melhor gosto… ajuda a confirmar a regra.
“A Ilha”, Victoria Hislop – fui ver na Amazon, passa-se numa antiga colónia de leprosos… não se arranja um destino mais macabro?
A minha leitura de férias (modo-arrogante-sou-tão-melhor-que-os-bimbos): “Money” by Martin Amis – um grande, grande, clássico de 1984 que nunca tinha lido; Nova Iorque na década da decadência e Londres no fim da era punk; sexo, drogas e um pouco de rock-n-roll, q.b.; egocentrismo a roçar o extremismo; pós-modernismo capitalista; o fascínio pela “princesa” Diana antes do casamento real… condimentos mais que suficientes para uma Grande história.
Retomo o MEC numa crónica “ante-pós-modernismo” (i.e., mais ou menos do tempo do Grande clássico) que li há muitos anos atrás, no monte-branco – que já não existe – ali na Arrábida:
De todo o tempo que perdem os portugueses, não há eternidade como o tempo que perdem a não ler. Durante o Verão, o país enche-se de turistas estrangeiros e quase todos – seja na praia, seja no hotel – andam quase permanentemente com um livro na mão. Esta estranha proclividade deixa o português perplexo: Estes bifes são todos malucos – pagam um balúrdio para cá virem e depois, em vez de aproveitarem, passam o tempo todo a ler… até usam os livros abertos para marcar lugares!”
É o facto cultural mais assustador de todos – os portugueses não lêem livros. Em nenhum outro país da Europa é tão raro ver alguém a ler um livro em público. Causa genuína aflição vê-los a não ler. Na praia, nas salas de espera, nos comboios, enquanto almoçam sozinhos, nos cafés… em toda a parte se vê uma população atarefadamente dedicada à actividade de não-ler. Porque é que não aproveitam estes tempos mortos?
Não se sabe. Uma das causas será o facto de o português ter horror à solidão. Esteja onde estiver, e por muito entediada que seja a sua condição, o português prefere estar a olhar para os outros – os tais que, por sua vez (e em vez de estar a ler), estão a olhar para ele. O português tem medo de se mergulhar num livro, porque isso significa que deixa de estar à coca. Não pode estar em lado nenhum sem sentir que está de serviço, a controlar a situação. Olha os que entram, os que saem; os que ficam, os que voam e fazem “Bzzz…”. Nem é só por bisbilhotice – é por desconfiança. Não pegam num livro porque têm medo de apanhar uma paulada nas costas enquanto estão distraídos. Para um português, ler é estar desprevenido.
Os preconceitos contra a leitura são terríveis. Entre o povo, diz-se que faz mal à digestão ler a seguir ao almoço ou ao jantar.
Existe também a noção grosseira de que ler “cansa a vista”, porque “faz mal puxar muito pela cabeça”. O típico brutamontes defende-se destas acusações dizendo que “ando a trabalhar todo o dia e, quando chego a casa, é para descansar, não é para ler”. A realidade é triste, mas tem de ser revelada: o português prefere cansar-se a trabalhar (e lembremo-nos que tem a capacidade singular de cansar-se muito a trabalhar pouco) ao descanso que seria ele ler. Resiste aos livros como aos castelhanos.
Inexperiência! Aí está a raiz do mal. Viver é experimentar, enquanto ler é deixar de viver. É por isso que, nos lugares públicos, preferem passar o tempo a viver – a ver a vida dos outros. No fundo, os portugueses querem saber o que se passa, mais do que querem, através da leitura de livros, passar a saber. Se lêem jornais, é com esta mesma intenção de “saber o que se passa”- folhear as páginas é como estar fechado num café ainda maior.
Têm medo de entrar nas livrarias, que pensam serem só para intelectuais, segundo a definição corrente de “intelectual” – alguém que lê um livro de vez em quando, por estrita obrigação profissional. Preferem receber os livros pelo correio, num invólucro castanho, como outros povos encomendam publicações pornográficas e clandestinas. Livros esses que não são geralmente para ler, mas para ver, e chamam-se quase sempre “Os animais da Terra”.
Em contrapartida, não há português que não escreva. O português é uma criatura maravilhosa – assim como fala, mas não ouve; escreve, mas não lê. Uma das consequências deste desnível entre quem escreve e quem lê é o seguinte: em Portugal há somente quarenta leitores para cada trinta mil autores. Não há nada mais fácil, hoje em dia, que escrever um livro e publicá-lo. E nada mais difícil que achar alguém que o compre e que o leia.
É um círculo vicioso. Como os que escrevem não lêem, não escrevem muito bem. E como, de qualquer modo, não há quem os leia, ainda escrevem pior. É por isso que tantos escritores produzem livros absolutamente ilegíveis.
A tranquilidade necessária à leitura (que nem é assim tanta) não parece abundar no nosso povo. Dizem que o povo é sereno, mas um polvo com epilepsia é mais. Nas salas de espera, passam horas a folhear revistas velhas a um ritmo alucinante, como se estivessem a tentar criar um efeito televisivo de animação com os bonecos. Curiosamente, os analfabetos ainda são os que mais se interessam pela leitura propriamente dita. Como não sabem ler, os livros têm para eles um mistério e uma dignidade que só os bons leitores ainda lhes atribuem.
E pronto, passados muitos anos, os factos já não são exactamente assim, mas as leituras de verão dos portugueses são no mínimo assustadoras (as dos outros e a minha)!

4 comments:

Nuance said...

Pois eu, curiosamente, fui buscar ao meu sotão um livro do grande MEC.
Estou a reler a coletanea de crónicas do Expresso, "A causa das coisas".
E a confirmar que o tempo passa e nada muda.

eu... said...

A Ilha li há dois ou três anos e não foi assim tão mau.
De momento ando nos "livres de poche", Amin Malhouf ao qual se seguirá a Sra Yourcenar. Tenho para uns dias...

Ricardo said...

Lápis, vais encontrar este texto no "A causa das coisas" (mas não, não me dei ao trabalho de o copiar, hoje em dia tudo o que é bom do MEC, encontra-se na net - há por aí muitos admiradores saudosos).

tu... Maalouf, muito onírico. Yourcenar, a melhor de sempre!

Maria Fonseca said...

O meu modo arrogante (temos-bem-melhor-gosto-literário-que-os-bimbos)chamou-se Fiodor. Provas no meu blog.