Nasci há 17 anos em Boukar e fui bafejado pela sorte. O sopro de Alá, pois meus pais emigraram para França há 14 anos atrás, quando eu ainda não tinha 14 anos de idade. Meu pai sempre foi um homem simples, de cultura modesta e mãos de trabalhador mas com uma visão alargada da maneira de ser dos homens e uma abertura de espírito singular. Estas características únicas deixaram-no aceitar e apaixonar-se por uma mulher diferente do que seria expectável para um filho de um pastor da montanha. Conheceu minha mãe em 1978 por ocasião de uma feira de gado em Dar Ben Karricha el Behri, na noite de festas que inaugurava o evento. Ela era então uma miúda franzina de longos cabelos negros e encaracolados que desafiava as convenções por não usar véu e mostrar abertamente os seus redondos olhos verdes sob o olhar dos velhos árabes. Tinha ela então a mesma idade que eu agora e embora fosse alvo das atenções dos rapazes locais, os costumes locais não lhes permitiam entabular conversa com aquela rapariga de sangue mestiço e frontalidade europeia. A meu pai não importavam aquelas regras e costumes mais próprios da cidade desenvolvida do que do meio rural e rapidamente se deixou levar pelos instintos para a ficar a conhecer. Ao quarto e último dia da feira, conhecia-a melhor do que ninguém e compreendia até a complexidade do mestiço, determinada pela sua raiz familiar catalã num clima de cisma associado à guerra de libertação argelina. Casaram 5 anos mais tarde em ambiente de felicidade e abertura, após numerosas visitas de meu pai a Dar Ben e tiveram entretanto um filho, meu irmão, que sucumbiu a uma pneumonia por falta de cuidados médicos. Por esta razão, no dia em que nasci, forte e saudável, meus pais tomaram uma decisão de destino e emigraram para França. Vivemos em Poitiers desde então, onde meu pai abriu uma padaria, fidelizando uma clientela mista de bons franceses e marroquinos emigrados, deixando a minha mãe o tempo e espaço para se dedicar ao estudo da literatura árabe e à minha própria educação. E desde que me recordo da minha infância, percorremos ano após ano a autopista del mediterráneo, largando de Poitiers, passando por La Jonquera, torneando Barcelona e Valência, em passo acelerado ao largo de Almeria, Málaga e Marbella também, em direcção a Algeciras, aonde chegamos invariavelmente pela madrugada. Meu pai arruma cuidadosamente o Renault, que já foi uma 4L, no dorso do ferry e ficamos a aguardar a largada do navio, aproveitando a bela vista desde o convés, entre o raiar do sol e a penumbra que envolve os pilares de Hércules. Este é o momento por que mais anseio em cada ano. O turbilhão dos sons misturados do mar no estreito em que o Mediterrâneo das minhas origens se encontra com o Atlântico da minha vivência, as sirenes vibrantes do porto em que África e Europa se juntam e os lamentos das orações profundamente místicas dos meus compatriotas vindos de todos os pontos do continente europeu para reencontrarem as sombras e cheiros do Atlas onde nasceram.