Sempre achei o mocho o bicho mais triste à face da Terra. Esta noite, a sentir-me triste como um mocho, recusei o convite para o programa alternativo embora estivesse mesmo a precisar de uma noite de copos entre amigos. Em boa hora, porque com o tempo que faz lá fora, mais vale insistir no romance que deixei parado desde o verão:
Há três anos, quando comecei a ganhar dinheiro a sério em vez de toda aquela merda que tinha estado a ganhar até então, o meu pai meteu-se em sarilhos nas mesas de jogo e nas apostas…
Sabem o que aquele sacana fez? Passou-me uma factura com todas as despesas que tinha feito com a minha educação.
É verdade: mandou-ma à cobrança. E a minha infância nem sequer tinha sido dispendiosa, porque sete anos, tinha-os passado eu com a irmã da minha mãe nos Estados Unidos.
Ainda tenho esse documento para aí guardado. Seis páginas A4 escritas à máquina com um só dedo. Por 30 pares de sapatos (aprox.), tanto. Por quatro estadas em Nailsea, tanto. Por despesas de gasolina com as mesmas, tanto. Cobrava-me tudo, mesadas, gelados, cortes-de-cabelo, tudo. E juntou uma nota, explicando num grosseiro tom de manga-de-alpaca, que aquilo era apenas uma estimativa, e que eu não precisava de o reembolsar até ao último tostão. A inflação fora tida em conta. Em suma, eu custara-lhe dezanove mil libras.
Fosse como fosse, ambos tivemos uma reacção visceral. Quando recebi a carta do meu pai, apanhei uma piela e mandei-lhe um cheque de vinte mil.
Quando recebeu o meu cheque, o meu pai apanhou uma piela e apostou o dinheiro todo num cavalo que ia correr no Cheltenham Colden Shield, um bicho que se chamava, sei lá… Dickshead, ou sei lá o quê.
O cavalo era jovem de mais para uma prova daquelas e não estava em grande forma, mas o meu pai tivera uma informação confidencial de uma fonte segura. Cem para oito pareceu-lhe bom. Fez a aposta por um intermediário. Dez minutos depois, o meu pai entrou em pânico e tentou cancelar a aposta. Mas o agente já tinha contratado o pessoal de mão, e a aposta teve de se manter.
Agarrado à garrafa de whisky, o meu pai ouviu o relato da corrida pela rádio. Como era de esperar, o Dickshead saiu a andar com cada pata para seu lado, a relinchar, tentando livrar-se das palas e do cavaleiro. Quando este, por fim, conseguiu dominá-lo o Dickshead começou a galopar atrás dos seus companheiros de corrida que já desapareciam ao longe. O locutor referiu-se uma ou outra vez a este cavalo, mas sempre no gozo, até que o meu pai esborrachou a telefonia, acabou o whisky e teve uma hemorragia nasal que lhe ia custando a vida.
Posteriormente, o meu pai comprou uma vídeo-cassete da corrida, e ainda hoje se baba todo quando a vê. Não só ganhou o Dickshead, como foi quase o único sobrevivente. No penúltimo salto, houve um daqueles amontoados terríveis que envolveu quase todos os competidores. O Dickshead passou por cima daquilo tudo aos tropeções e adiantou-se aos seus adversários, restando-lhe apenas um obstáculo para vencer.
O cavalo solitário prosseguia o seu caminho, sem pressas. Nem sequer chegou a saltar o último obstáculo. Praticamente, comeu-o, continuando assim sem esforço. Por fim quando à sua frente já não tinha mais que um pequeno relvado a uns dez metros da meta, o Dickshead tropeçou e caiu. O jockey, que, nesta altura, já via o triunfo ao seu alcance, tentou montar de novo. O mesmo aconteceu a alguns dos seus adversários, que haviam caído mais atrás. Ao cabo de dez minutos – já diversos cavalos sem cavaleiro tinham cortado a meta, e um outro competidor conseguira saltar o último obstáculo e parecia que iria ser o vencedor – o cavaleiro conseguiu dominar o Dickshead, convencendo-o a deixar de andar às voltas, e passou a linha de chegada à rasca, ganhando por meio comprimento.
Conclusão: Martin Amis, brilhante e com atenção aos pormenores, e eu a gastar o neurónio com literatura boa que até parece de cordel…